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SUPERAGÜI: Praia Deserta

Pedalando pela praia, em direção à Vila do Superagüi, onde um baile de fandango já está para começar, o caiçara Carlinhos – magro, alto, pele curtida pelo sol – avista um sujeito a pé. É fim de tarde e na luz do crepúsculo ele percebe apenas que se trata de um turista. Mais perto, enxerga claramente as nádegas do sujeito. Nu, o homem caminha tranquilamente pela areia. Se os naturistas conseguirem regulamentar sua praia na Ilha de Superagüi, como querem alguns, terão de conviver em harmonia com o modo de vida caiçara - com figuras como Carlinhos e sua mãe, dona Rosa, que há 40 anos habitam a Praia Deserta.

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– Come arroz com feijão e não reclama. É o que tem, porque onte’ você não saiu matar peixe.

Tonto de sono, o pescador Antônio Carlos, o Carlinhos, sentou-se à mesa rústica. O puxão de orelha que ouviu da mãe, dona Rosa, tinha sido em tom de brincadeira, mas ele sabia que hoje teria que sair pra passar a rede – afinal é ele quem toma conta dela. Na noite anterior, trocara a pescaria por diversão, mas sabia que a mãe ainda tinha alguns peixes para fazer. Tinha ido à vila curtir o baile de fandango que a turma aprontou para brincar o carnaval. Dançou até de manhã. Só apareceu em casa com sol alto e foi direto pra a cama. Levantou mais tarde, para o almoço.

Isolamento natural

A família vive no Sítio da Pedra Branca, praticamente isolada. O lugar é pouco mais que uma clareira em meio a mata, a 500 metros da praia. Árvores frutíferas, plantadas pelas mãos de dona Rosa, protegem os casebres simples, de madeira, dos ataques do vento. Uma construção serve de cozinha, a outra abriga os quartos dos dois. Mas se Carlinhos desceu à Vila da Barra do Superagüi, a 10,5 quilômetros de onde moram, é porque sabia que a mãe não ficaria sozinha. Dona Rosa teria a companhia de alguns casais que acampavam por lá durante o carnaval.

Na manhã seguinte, enquanto o filho recuperava o sono, dona Rosa cuidou dos seus afazeres – tirou água da bomba, lavou um punhado de roupa e colheu alguns maracujás para o suco, como faz há mais de 40 anos. A família chegou à Ilha de Superagüi em meados dos anos 60, por vontade do pai – Ilídio Atanásio Pires. “Na época, Carlinhos não passava de um moleque. Tinha uns 10 anos”, proseia a senhora pequena de traços caboclos. O nariz pequeno e delicado e o queixo fino e bem desenhado sugerem a beleza da juventude. O amor entre ela e Ilídio começou com uma paixão daquelas... Fulminante.

– Desde que nos casamos, eu mais Ilídio, nunca passamos sequer um dia separados. Só depois que o véio morreu.

Tudo começou em Guaraqueçaba, em fins dos anos 50 e começo dos 60. Dona Rosa conta que trabalhava em uma fábrica de palmito em conserva, uma entre tantas outras que havia espalhadas pelo litoral nos idos de 1960. A garaqueçabana encantou o caiçara nascido na Barra do Ararapira. Namoraram, casaram e tiveram filhos.

O amor era tanto que dona Rosa nem hesitou quando, um dia, o marido lhe propôs largar tudo o que tinham na cidade para ir viver na Ilha de Superagüi – então um lugar sem facilidades como luz elétrica água encanada, como ainda permanecem várias casas e algumas comunidades mais isoladas no Parque Nacional.
Recordações

Exibindo um vigor de fazer inveja, dona Rosa lembra dessas histórias com sorriso, enquanto limpa alguns peixes. Os olhos pequenos brilham. Já tem bem uns 70 anos, mas não parece. Está sempre disposta e até os cabelos teimam em manter a cor negra. Apenas alguns fios grisalhos lhe denunciam o passar dos anos. Natural de Guaraqueçaba, ela deixou a família e o conforto do lar para seguir seu coração.

Talvez seja para sempre um mistério o que motivou seu Ilídio a partir nessa aventura, já com dois filhos pequenos. O fato é que ele, a mulher e os rebentos vieram embora para a Vila da Barra da Ararapira. O povoado onde o velho nasceu e tem até hoje vários familiares fica no extremo norte da ilha. O povoado está praticamente na divisa entre os estados do Paraná e São Paulo e é ponto de passagem para o Marujá, na Ilha do Cardoso, e para o município de Cananéia, no continente.

No começo a família ficou de favor na casa de parentes, até que Ilídio comprou o sítio, na Praia Deserta. Escolheu um lugar afastado de propósito. Queria viver na natureza. Na juventude, perambulou por Paranaguá, Praia de Leste e Guaraqueçaba. Trabalhou em todo tipo de emprego, de carpinteiro, pedreiro e operário. Dizia volte e meia que na cidade “o homem é o lobo”. Sempre tem um explorando. E filosofava. Dizia que a culpa era do capitalismo, que corrói de um jeito sutil e nefasto as relações inter-pessoais. Pregava os ensinamentos de uma vida simples.

Fez questão de erguer sua casa própria casa, ou rancho, como os caiçaras chamam suas moradias. E gostava de alimentar o folclore em torno disso. Dizia que usou apenas tábuas e pedaços de pau que acostaram pela praia. Naquele tempo, segundo ele, mesmo as embarcações maiores eram de madeira, e muita tábua boa se desprendia dos navios.

O causo parece mais história de pescador, embora o mar traga muita coisa até à praia. Uma maré presenteou a família com uma velha geladeira, que hoje, pintada de verde, Carlinhos e a mãe usam como armário de cozinha. O apego de Ilídio pelo ranchinho era tanto que, quando estava acamado, beirando a morte, não queria de jeito nenhum mudar para a casa nova que lhe fora construída e há tempos já estava pronta.

“Era seu desejo morrer na casinha que ele construiu”. Foi o cunhado quem finalmente lhe convenceu de que a mudança era necessária. O argumento foi forte. “Que o senhor vai morrer é certo, mas se não mudar é bem capaz desse rancho desabar e o senhor acaba indo antes da hora”, teria dito o cunhado ao velho.

Do ranchinho do Ilídio resta apenas a cozinha, que se sustenta torta, como uma Torre de Pisa caiçara. Muitas tábuas já cederam, mas a aparência frágil– que pende para cá, pende para lá e nunca cede – só aumenta a mística. Era ali, em torno da mesa, que o velho Ilídio passava a maior parte do tempo, sempre pronto para uma boa prosa. E era bom de papo. Sempre tinha uma história para contar. Uma figura.

Gabava-se de já ter lido Guimarães Rosa e Machado de Assis. Tinha uma boa biblioteca, com diversos títulos que ganhou dos amigos. Os livros ocupavam uma grande caixa de papelão, desgastada pelo manuseio. Sentado à mesa, ele a puxava para lá e para cá. Para o velho, a leitura era um prazer, espantava o tédio do inverno e ensinava novas visões de mundo.

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Na cadeira do pai – a única com almofada -, Carlinhos devora o rango. O suco de maracujá ajuda a comida a descer pela goela. Entre uma garfada e outra, conta para a mãe os detalhes do fandango: quem tava lá, quem não tava; quem dançou, quem tomou todos. A novidade quentinha era o aniversário de seu Alcides, o ancião da ilha, 88 ou 89 anos, nem ele lembrava direito.

– E as namoradas dele? Apareceu pra dar parabéns?

A pergunta bem humorada de dona Rosa tem fundamento. Seu Alcides Pereira Rodrigues pode ser o sujeito mais velho de todo o Superagüi, mas não se engane – ninguém bate o homem quando o assunto é fandango. Dança a noite inteira e, se puder, com todas as meninas do baile. Se falta parceira no salão, não se acanha. Procura lá fora mesmo alguma moça disposta a dançar – só ou acompanhada.

Muitos consideram o velho uma ave de rapina, mas ele nem liga. É viúvo e não deve nada a ninguém. Na vila, seu estilo arrojado é motivo de brincadeira, mas sem maldades, afinal, seu Alcides é um homem correto e bastante respeitado. É o último puxador de fandango da vila. Na dança, é ele quem marca o ritmo das modas com os pés – é o rei das tamancas.

Akdov, o bar

Na Vila do Superagüi, ao sul da ilha, o fandango rola solto nas noites do Akdov. O bar é a terceira empreitada de Laurentino Souza, um caiçara nascido lá pros lados de Rio dos Patos, uma pequena comunidade no interior do Parque que já teve até campo de futebol e igreja, mas hoje está desaparecendo. Antes ele teve mercearia, duas vezes, mas quebrou. Diz que dinheiro na ilha só circula no verão – quando turismo e pesca estão em alta. No restante do ano a turma se vira como pode...


Com o bar Laurentino acertou a mão. Há 14 anos na ativa, o Akdov já virou referência entre os fandangueiros do litoral. O nome foi inspirado por uma vodka. “Quando vi uma garrafa dessa tal de Akdov... Na primeira vez eu já gostei. Aí disse pra mim mesmo que se tivesse bar ia chamar Akdov”. Hoje vem gente de toda parte para curtir o fandango do botequim caiçara e o lugar virou referência também para os fandangueiros. "Aqui é rustico, é é assim que a turma gosta".

Neste carnaval, até seu Leonildo Pereira - que mora em Rio dos Patos e faz as melhores rabecas e violas da região – apareceu por lá. “Só pra tocar com meus amigos de Superagüi”. Na vila, o fandango é liderado por seu Pedro Miranda e seu José Squenini. O sobrenome italiano do mestre fandangueiro é uma herança dos antepassados europeus, que fundaram uma colônia na ilha, lá pelos idos de 1850.

O projeto de colonização, liderado pelo então consul suiço Perret-Gentil, acabou se revelando um fiasco, mas deixou raízes profundas na ilha. O mais ilustre colono da época foi Willian Michaud, que chegou ao Superagüi com apenas 25 anos, casou-se com uma garota caiçara, Custódia, e viveu lá até seus últimos dias, apesar do isolamento e de todas as dificuldades.

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Enquanto conta os causos do fandango Carlinhos repete vários gestos do velho Ilídio. As feições lembram muito o pai. De sorriso fácil, Carlinhos tem uma pronúncia única para as palavras, um jeito de falar que é só seu. Está bem conservado para a idade, mas o passar dos anos lhe deixou as costeletas brancas, contrastando com o cabelo e o bigodinho negros. Já está na casa dos 50, mas vive com a alegria de um garoto. Passou uns tempos meio cabisbaixo, é verdade.

A morte do velho Ilídio, em agosto do ano passado, balançou a família. Os outros filhos de dona Rosa vivem lá para os lados da vila e ficou para Carlinhos a responsabilidade de cuidar da mãe. Os dois chegaram a pensar em abandonar o Sítio da Pedra Branca e mudar para perto da família, mas para quem já se habituou a vida na Praia Deserta é difícil partir. "Na praia, água vem do poço, peixe vem do mar e dinheiro mesmo só para farinha, óleo e arroz – e um botijão de gás vez ou outra. Na vila, tudo paga".

Passada a tempestade – literalmente, já que segundo Carlinhos “deu muita trovoada quando o véio estava nas últimas” -, os dois acabaram ficando. Um toma conta do outro. Ambos sabem que a vida na vila não é lá essas maravilhas. Tem roubo e intriga. Nada como a tranqüilidade do sítio. Pesou também para a decisão o apelo dos amigos de toda parte – Curitiba, Londrina, Ponta Grossa e São Paulo –, que querem manter viva a memória de Ilídio preservando o sítio. Gente que há anos visita a família e os ajuda como pode.

Dona Rosa lembra de uma vez que um pessoal lá de Matinhos arranjou até um carro para o seu Ilídio. "Era uma Rural Willys, que rodava com uns botijões de gás... A maresia foi gastando o carro e o véio remendou ela com umas tábuas. Era a alegria da piazada", lembra dona Rosa. Hoje, ela e Carlinhos se acostumaram à rotina sem o velho, mas sentem ainda muito sua falta. Remédio bom é manter a rotina.

A cumplicidade entre os dois aumentou. Carlinhos pesca à noite, dona Rosa limpa os peixes pela manhã. Ágil, a faca em suas mãos tira escamas, separa vísceras e corta os filés. Também vão sempre juntos à vila. Ele pedalando a bicicleta e ela sentadinha atrás, no bagageiro, cuidando a saia. Lá, dona Rosa freqüenta o culto da igreja evangélica, enquanto Carlinhos freqüenta o bar, para tomar umas cataias – a cachaça curtida na folha da planta que cresce no norte da ilha e é conhecida como o “uísque caiçara”. A mãe não liga que ele beba, mas pega no pé quando exagera.

Naquela tarde quente, depois do almoço, Carlinhos, de cueca, subiu ao porto, como os caiçaras chamam o local que marca, na praia, a entrada para a trilha que leva à casa. Observava uns cardumes de tainha saltarem no mar, a maré cheia, quando chegaram uns visitantes. O casal, de São Paulo, veio à pé, da vila – estavam cansados e com sede. A moça toma a iniciativa da conversa.

– Quanto que custa pra acampar aqui?

– Aqui a gente não faz preço. Cada um ajuda como pode.

Quem passa uns dias no sítio ganha uma lição de vida. Carlinhos e dona Rosa dividem tudo o que tem. Ninguém passa necessidade. Os visitantes entram no ritmo, e dividem as tarefas do rancho. Bombeiam água, cozinham, lavam louça e limpam o terreno. Também dividem os mosquitos e pernilongos, que ao entardecer enlouquecem quem não está acostumado. A dinâmica no sítio lembra uma comunidade, como Ilídio sempre quis.

Livre, leve e solto


Agora, depois de sua morte, outro sonho de seu Ilídio poderá se tornar realidade. O velho sempre dizia que no Superagüi só faltava mesmo uma praia de naturismo. Ele conheceu a filosofia ainda na década de 70, quando alguns naturistas apareceram no sítio. Ficaram amigos da família e acamparam com certa freqüência durante alguns anos. “Andava todo mundo nu”, lembra Carlinhos. “Viva e deixe viver. Se não atrapalha os outros tá tudo certo”, dizia o pai.

Mesmo sem a liberação legal para a Praia de Naturismo na ilha, que foi proposta discutida nesta temporada, já tem gente que vem para a ilha curtir a praia livre, leve e solto. O contato com natureza da ilha, que parece ter uma energia especial, principalmente na imensidão da Praia Deserta, recarrega as baterias, segundo dizem. A maioria do povo que mora daquele lado da ilha não liga muito. Mesmo entre os nativos adultos, que vivem na Deserta, é comum o hábito de andar por aí de cueca. Colocam bermuda como quem está vestindo passeio completo.

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Quem não gostou muito da novidade da praia de peladões é Antônio Dias, que vive na outra extremidade da Praia Deserta. Enquanto o sítio de Ilídio fica mais próximo à Vila da Barra do Superagüi, no sul da ilha, o de Antônio Dias está mais perto da Vila da Barra do Ararapira, ao norte, no fim da Praia Deserta.

– Essa praia é passagem, pra toda gente que vem e vai do Ararapira ao Superagüi. Como é que nós vamos fazer, se fecharem a praia pr’esse povo de nudismo. Eu sei que não é pouca vergonha, que o negócio é sério, tem até filosofia e tudo, mas vai acabar prejudicando nós, se fecha a praia.

O sítio onde mora é bem cuidado, mas não tem luz. Banho só de rio. A água vem de uma bomba manual, em frente à casa, onde ficam os quartos e a cozinha. Ao lado, um ranchinho menor coberto com folhas de palmeira serve defumar peixes, trabalhar nas redes de pesca e cozinhar comida no fogo de chão. Seu Antônio conta que já teve roçado, mas “hoje num vale a pena”. Nem roda de farinha sobrou pra contar história. Trabalho, só de pesca.

Com 65 anos, Antônio Dias é o rígido patriarca de um clã formado por seus dois filhos, João e Jair, a mulher, Jandira, e a filha, Dorotéia, que já tem quatro rebentos, todos registrados com nomes que começam com a letra M, “porque acho bonito”. Marciano, Marciana, Marcelo e Marceno. Quando está por perto, ninguém ousa lhe interromper ou desdizer.

Baixinho, olhar estrábico e sorriso contido, que pode se fechar a qualquer instante, Antônio Dias carrega consigo a alcunha de sujeito ruim e seu nome chega a despertar calafrios em alguns caiçaras mais velhos. Não é para menos, o homem já arranjou briga pra mais de metro – seja com nativo ou gente do Ibama. Mas a fama de mau veio mesmo depois que deu uns três ou quatro tiros no seu Ilídio.

A verdade é que Antônio e o pai de Carlinhos nunca se deram bem. Richa antiga, dizem, que piorou com o passar dos anos. Cada um na ilha tem sua própria versão para a história, mas o fato é que o esposo de dona Rosa não morreu no ataque. Ficou sim com três balas alojadas pelo corpo. Suas pernas nunca mais foram as mesmas, por isso passava tanto tempo à mesa. Essas, porém, são outras histórias.

SUPERAGÜI: Rio dos Patos

– Jamile, vai chamá o vô!

Dona Alzira prepara café na térmica. O calendário marca o último dia de 2003. "O bijú já tá pronto. Avisa ele pra mim".

Dona Alzira

A menina sobe os degraus da casa e vai até a sala. “Vô, vem toma café. A vó tá chamando”, diz ela. Seu Julino está na janela da casa, acompanha o movimento quase inexistente na vila. De sua casa ele pode ver o Rio dos Patos serpenteando à direita da pequena comunidade. As casas são construídas em madeira, em elevações sobre o mangue. Seu Julino interrompe seus pensamentos.

– Já vou indo.

Para se chegar de barco à vila de Rio dos Patos é preciso subir o pequeno riacho que corta o mangue. O trecho só pode ser alcançado por embarcações maiores com maré alta, mas mesmo assim com muito cuidado para não encalhar. Na vazante só é possível subir o rio em canoa a remo.

Mesmo com todo esse isolamento, no último dia de 2003 o movimento na vila estava acima do normal. Canoas sobem e descem o estreito riacho. Nas férias, muitos aproveitam para visitar os parentes, como Jamile que vive em Guaraqueçaba e só nessa época pode passar uns dias com os avós.

Os três se sentam nos bancos baixos em volta do fogo-de-chão, quase de cócoras, bem ao modo indígena. “Renato disse que ia trazer uns amigos para visitar a gente véio”, diz Alzira a seu Julino. Ele não dá muita atenção, mas Jamile se interessa, com a curiosidade natural dos adolescentes. “O que eles vêm fazê aqui?”.



Renato Caiçara

– Conhecê, oras.
– Mas aqui?
– É. Renatinho disse pra deixa umas ostras pr’o almoço.

O velho esconde o interesse, mas a notícia da visita é bem vinda. Ele bem que gosta de um dedo de prosa. Depois do café, seu Julino retorna à janela e às suas divagações. “Ai, ai. Vai sê bom algum movimento, só para variar...”. E volta a sua preguiça, com o olhar perdido na paisagem.

A aparente fragilidade física não faz jus à força de vontade deste homem, que já fez de tudo nessa vida para criar os seus. Hoje, com 78 anos de idade, seu Julino é o patriarca dos Pereira.

Todos os demais membros da família são seus filhos, sobrinhos ou netos. Sempre alegre, o velho garante que neste mundo de Deus não há família tão bonita como a sua. E gosta de repetir:

– Eu sou Rei aqui do Rio dos Patos


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Rio dos Patos, onde vive a família Pereira, é um dos lugarejos mais isolados no interior do Parque Nacional de Superagüi. As condições de vida são bastante semelhantes às encontradas pelos primeiros imigrantes suíços, quando chegaram à região na segunda metade do século XIX.

No vilarejo não há luz elétrica nem saneamento básico. As primeiras casas foram construídas no início dos anos 1930 pela família Pereira, que veio do Ariri. A mudança, de acordo com o patriarca Julino Manoel Pereira, foi necessária.

– Lá pra cima a terra não era boa.

Garantem que a propriedade onde agora vivem foi deixada como herança para dona Alzira Pereira Coelho pelo seu avô, o coronel Virgílio Domingos Afonso, descendente dos imigrantes da então Colônia de Superagüi.

– Aqui é tudo herança da minha mulher, por isso o Ibama não tira nóis, mas eles vive pinchando pra gente sai.

A vila não passa de um apanhado de cinco ou seis sítios. Algumas centenas de metros mata adentro estão as ruínas da fazenda do tal coronel. “Tem pino de tijolo lá na mata com mais de cinco metros de altura”, diz Julino, com os olhos esbugalhados, como se tivesse visto assombração.

Partindo da vila por uma trilha esguia na mata encontramos alguns vestígios de pedras empilhadas. Estão camufladas sob terra, limo e vegetação rasteira.

O vigor e a exuberância com que cresce a Mata Atlântica na Ilha de Superagüi se encarregou de apagar do mapa a maioria dos vestígios do que um dia foi a Colônia Suíça de Charles Perret-Gentil e William Michaud.

A fazenda do coronel Virgílio, segundo Alzira, chegou a ter uns duzentos escravos.

– Naquele tempo tinha uns negro. Mas era um que perturbava e ele já mandava matar.

Os olhos de Alzira ficam esbugalhados, dando-lhe um ar dramático. Ela e seu Julino acreditam piamente que estas matas que cercam a vila são povoadas pelas almas daqueles negros assassinados.

– São os Caduema. Às vezes leva uns bicho, gente até.

Michelle, dona Alzira e a neta Jamile

Pergunto como é a vida ali e ela descontrai. “Na época o serviço era essas coisas de mexer no mato, na terra. Se plantava arroz, feijão, mandioca, cará. Hoje vive tudo da pesca e ostra. Minha nora vai no mangue e tira cinco seis caixas de ostra.”

Na verdade, até a metade da década de 1990 as famílias ainda cultivavam arroz, milho, feijão e mandioca, que era beneficiada nas casas de farinha. Hoje a cultura está proibida, mas algumas comunidades ainda produzem mandioca e farinha à revelia dos fiscais do Ibama.

Em Rio dos Patos, porém, o movimento das rodas de farinha há tempos cessou. Os alimentos e itens básicos são comprados de comerciantes que percorrem essas vilas de difícil acesso em pequenas embarcações.

– Fruta vem tudo comprado. Só banana têmo aqui, mas porque plantâmo.

Também deixaram de existir a capela e o pequeno campo de futebol que havia no centro da comunidade e era chamado pelos moradores de “praça”. Lá ocorriam os campeonatos de futebol, brincadeiras e festas como a de Nossa Senhora do Carmo, Padroeira do lugar, celebrada até alguns anos atrás no dia 16 de julho.

Hoje, são poucas as famílias que residem permanentemente na comunidade de Rio dos Patos. Quem está em idade de trabalhar vai para Guaraqueçaba ou Paranaguá em busca de trabalho, saúde e educação, nessa ordem. Ficam para trás apenas os idosos e algumas crianças menores.

Vai encarar? Entre no clima

A reportagem Superagüi: Praia Deserta está enorme, mas se você está disposto a encarar a leitura barra de rolagem a baixo, sugiro que ponha um fandango pra entrar no clima. Dá para ouvir o burburinho do pessoal.

As músicas em mp3 estão hospedadas no site Litoral Turismo, do nosso amigo Marcos Malucelli. Ouça a Música 3, gravada ao vivo no Akdov. Clique.